domingo, 26 de novembro de 2006

Mário Cesariny



Poeta e pintor morreu este domingo
(Excertos de)
A última entrevista de Mário Cesariny de Vasconcelos
De Vladimiro Nunes “Semanário O Sol”

Figura de proa do movimento surrealista português, Mário Cesariny faleceu na madrugada de domingo, após longa luta contra uma doença prolongada.
O SOL republica agora o último grande testemunho de um artista incómodo

Para o Mário, como começou o surrealismo?
Estávamos eu e o Alexandre O’Neill (em 1947) muito incomodados com os neo-realistas e ele, uma vez, trouxe-me um livro em francês e disse: ‘Lê isto’. Era a História do Surrealismo, do Maurice Nadeau, que, no final do volume, dizia que os surrealistas já tinham dado o que tinham a dar. Mas o nosso começo foi aí.

… E acabaram por conduzir à formação do grupo, Os Surrealistas.
Pois… Uma parte do nosso grupo andava na António Arroio – tanto do grupo dissidente, como do oficial. Estava o Fernando Azevedo, o Vespeira, o Júlio Pomar... Quanto a nós, estávamos eu, o Cruzeiro Seixas, o Pedro Oom… Depois, estes três ou quatro trouxeram o Fernando José Francisco e fizemos uma exposição, em que entrou também o Carlos Calvet.

(os Ingleses) São actores. Estão sempre a representar Shakespeare.

Um vagabundo chega à tabacaria e pede: ‘May I have a box of matches, please?’ Isto é linguagem de príncipe. ‘May I have’... ‘Poderei eu ter...Uma caixa de fósforos’. Um vagabundo. Os outros são iguais ou ainda mais sofisticados. Já os americanos são uma espécie de ingleses a quem tiraram a inquietação, a metafísica. De maneira que eles andam muito contentes, ‘How are you?’, ‘Fine, thank you’. Com imensas dores de estômago porque a comida é muito má.

O Mário também costuma falar de uma estada em Paris, financiada com a venda de um quadro da Vieira da Silva…
É verdade. Eu escrevi-lhe a dizer: ‘Maria Helena, estão a apertar muito o rabo do gato’. A polícia fazia-me lá ir como suspeito de vagabundagem. Então, a Vieira da Silva, através do Manuel Cargaleiro, deu-me um quadro dela, muito bonito.Eu só pedia dinheiro para a passagem, mas aquilo rendeu imensa massa, que eu fui conspicuamente gastar lá para fora.

Muitos de vós (grupo surrealista dissidente) seguiram caminhos diferentes, com algumas rupturas pelo meio.
A partir de certa altura, este grupo também se desfez. O Cruzeiro Seixas foi para África, o António Maria Lisboa morreu tuberculoso... Deixámos de nos procurar.E o Mário ficou isolado como representante do surrealismo em Portugal.Não pensava nisso. Nem as pessoas acreditavam. Para elas, o António Pedro continuava a ser o grande surrealista.
Com a democracia, esfuma-se a história do surrealismo.

O Mário continuou a escrever e a pintar, mas já sem aquele espírito de grupo.
O José Escada, o pintor, fazia umas coisas em papel vermelho, e fez uns cravos, os cravos do 25 de Abril, com uma dedicatória bonita: ‘Ao Mário, que há muito tempo desconhece o perfume’.

Diz que, para si, a pintura é mais terapêutica do que a poesia. Porquê?
Na poesia tens de escrever se estás zangado, se estás optimista, se estás paixonado. Coisas que na pintura não existem. Embora não seja, parece uma coisa mais impessoal. Não fala das dores de estômago ou das dores de cabeça, das dores de corno. O pincel não dá isso.

Como é que lida com o reconhecimento que tem recebido nos últimos anos?
Não dou muita atenção a isso, sabe? Recebi com alegria a Ordem da Liberdade, porque era a Ordem da Liberdade. Liberte chérie! Agora vivo num deserto. Tenho alguns amigos, muito poucos. Mas realmente não há onde ir, em Lisboa. Quer dizer, para mim, porque a gente mais nova junta-se nos pubs, com a música muito alta, para não terem de falar eles. Nem falar, nem pensar.

Já o ouvi dizer qualquer coisa do estilo: está o poeta, o artista, no pedestal, e depois volta para casa sozinho. O Mário sente-se só?
Acho que sim. Sinto-me só, com as minhas ideias, que me fazem companhia, e com um ou outro amigo que ainda existe, com quem fizemos batalhas, como o Cruzeiro Seixas ou o Fernando José Francisco… Ou o Mário Henrique Leiria, que morreu, o António Maria Lisboa, que morreu, o Pedro Oom, que morreu, o Henrique Risques Pereira, que morreu, o Fernando Alves dos Santos, que morreu... Tenho de me sentir sozinho. Estava escrito que eu ia durar até aos 80 e tais.

O Mário pensa na morte?
Não muito. Penso mais nas doenças.

Acredita na imortalidade?
Não sei. Quando lá chegar, eu telefono [risos]…

O telefone não tocou
Lá chegando, Mário
Talvez te esqueça a promessa
Ou, quiçá o seu contrário
Ou não haja possibilidades
Do pagar no destinatário
MIM

O poeta e pintor Mário Cesariny morreu Domingo de madrugada em sua casa, em Lisboa, cerca das 5h30, aos 83 anos.
Cesariny, nascido em Lisboa a 09 de Agosto de 1923, de pai beirão e mãe castelhana, foi o principal representante do Surrealismo português.

Além de poeta, romancista e ensaísta, Mário Cesariny dedicou-se também às artes plásticas, sobretudo à pintura.

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